BARÃO
GERALDO:
História e Identidade Local
Warney Smith *
RESUMO:
Interpretando as narrativas orais e documentais da memória
de “Barão Geraldo” (distrito de Campinas–SP
fundado por imigrantes), a luta dos “baronenses” pelo
“progresso” de sua terra e os motivos que moveram-nos
a lutarem por sua emancipação de Campinas durante
as décadas de 60 e 70 (e que ainda hoje continuam influenciando
as discussões e reivindicações dos movimentos
sociais que ali existem), deparei-me com discussões teóricas
sobre “identidade” e suas interpretações
relacionadas às concepções de “ideologia”
e “cultura”, que envolvem a existência local,
mas não encontrei nenhuma teoria específica sobre
a “naturalidade” ou “identidade local”
Nesse texto, levanto questões e critérios para que
possamos discutir e propor uma possível teoria da “identidade
local” no futuro. Se conseguir suscitar seu interesse para
a questão, já atingi meu objetivo.
PALAVRAS CHAVE: Identidade Local - Ideologia e Cultura - Bairros
rurais - Imigrantes - Microhistória
SUMMARY:
Interpreting the oral and documentary narratives of the memory of
“Barão Geraldo” (district of Campinas–SP
established for immigrants), the fight of “baronenses”
for “progresso” of its land and the reasons that had
moved them it to fight for its emancipation of Campinas during decades
of 60 and 70 (and that still today they continue influencing the
quarrels and claims of the social movements that exist there), I
faced with theoretical quarrels on “identity” e its
interpretations related to the conceptions of “ideology”
and “culture”, that they involve the local existence,
but I did not find no specific theory on “naturalidade”
or “local identity”
In this text, I raise questions and criteria so that let us can
argue and consider a possible theory of the “local identity”
in the future. If to obtain to excite its interest for the question,
already I reached my objective.
Key-words: Local identity - Ideology and Culture - Agricultural
quarters – Immigrants
BARÃO GERALDO: História e Identidade
Local
Warney Smith *
O “contraste” como ideologia
“O mundo social é também representação
e vontade.
E existir socialmente é também ser percebido
como distinto”
Pierre Bourdieu (1989)
aaaaaaaNo início do século
XX, diversos imigrantes italianos, portugueses e libaneses compraram
pequenos sítios perto de Campinas (SP) ao redor da “Estação
Barão Geraldo” (da extinta Estrada de Ferro Funilense),
e ali construíram um bairro rural fundado na policultura
e na auto-subsistência. A produção hortifrutigranjeira
desses sítios, além de garantir a subsistência
dos clãs de seus proprietários, começou a ser
vendida no Mercado Municipal de Campinas ou mascateada pela cidade
a partir do final da década de 20.
aaaaaaaLocalizado entre duas antigas fazendas de café e cana
(Rio das Pedras e Santa Genebra) o bairro rural que ficou conhecido
como Barão Geraldo centralizou-se em torno de uma capela,
de um campo de futebol e de diversas vendas - todos vizinhos à
Estação - onde seus moradores em convivência,
iniciaram a construção de uma identidade local.
aaaaaaaCom a instalação da fazenda de cana e destilaria
da Rhodia em seus arredores, a partir da década de 40, os
“baronenses” começaram a lutar pelo “progresso”
e pela polêmica elevação do bairro rural a Distrito.
Para isso iniciaram a loteação de seus sítios,
a busca da implantação de indústrias e a doação
de terras para implantação da Universidade de Campinas
- hoje Unicamp.
aaaaaaaNesse texto tento interpretar a luta de seus moradores pelo
“progresso” de sua terra e os motivos que moveram os
baronenses a lutarem por sua emancipação de Campinas
durante as décadas de 60 e 70 (e que ainda hoje continuam
influenciando as discussões e reivindicações
dos movimentos sociais que ali existem) comparando-os com as discussões
teóricas sobre “identidade” e suas interpretações
relacionadas às concepções de “ideologia”
e “cultura”, de uma parte da principal bibliografia
que embasam o tema.
aaaaaaA representação da história de Barão
Geraldo contada pelos baronenses, é uma história originada
de raízes culturais e ideais de autonomia de imigrantes e
migrantes (vênetos, portugueses, libaneses e brasileiros (caipiras?)
vindos no “mesmo navio” para (ou da) “mesma fazenda”
(onde se estabeleceram inicialmente) da região campineira,
no início do século, consubstanciadas no grande projeto
de adquirir sua pequena propriedade de terra (perdida ou não)
e se possível perto de alguma cidade, onde poderiam viabilizar
a vida com sua famílias e talvez mesmo obter algum lucro
com a “venda do excedente” na cidade.
aaaaaaA memória local enfatiza a origem de Barão Geraldo
na chegada dessas famílias, no início dos anos 20,
comprando partes da Fazenda Rio das Pedras e instalando-se em meio
às piores condições de vida, caracterizando
uma “luta pela autosuficiência” que tais trabalhadores
e seus pais buscavam em relação aos grandes fazendeiros
de café e cana. Depois prossegue pelas mudanças das
condições de “parceiros” (meia ou terça)
para “sitiantes”, e da “monocultura de café”
para a “policultura de hortifrutigrangeiros”. Também
existem vários mitos e lendas, construídas para ilustrar
toda essa transformação que passaram, sendo a mais
famosa o mito do “boi-falô”, que nos anos 60 foi
usado para criar uma imagem de especificidade local, quando Barão
Geraldo passou a se auto-reconhecer como “A Terra do Boi-Falô”.
aaaaaaEssa memória da ocupação do local e as
mudanças de condição de vida está profundamente
interligada com a formação de um “bairro rural”,
cuja vida simbólica girava em torno de uma capela, uma estação,
um campo de futebol e algumas vendas, além é claro
dos próprios sítios e famílias. A organização
familiar pela forma daquilo que chamo arbitrariamente de “clãs”
(centralizando a cultura do bairro) foi a melhor forma desses camponeses
sobreviverem e se defenderem às crises cafeeiras que viveram,
por assim criar uma espécie de “exército de
mão-de-obra” para acumularem rapidamente recursos nas
mãos das famílias. Viabilizando assim, tardiamente,
a antiga estratégia dos “núcleos coloniais”
e disso se aproveitando.
aaaaaaOriginada na centralidade dessas formações familiares,
os “clãs”, esse universo cultural camponês
fundava-se pelo que pude perceber no reconhecimento da importância
a priori de cada um dentro daquele núcleo populacional que
vivia e dividia a região. “A priori” porque cada
um fazia parte da família e porque é essa uma característica
geral e diferenciada da cultura camponesa (aquilo que uma vez Woortmann
(1993) chamou de “campesinidade”), seja ela vêneta,
seja de brasileiros. Não apenas por necessidade econômica
(como Zuleika Alvin(1986) falou dos vênetos) mas também
por necessidade “cultural”. Afinal, a obrigatoriedade
de todos da família lutarem por trabalho de todos para todos
é uma característica comum entre camponeses de qualquer
lugar ou tempo. É o que os identifica.
aaaaaaAlém disso, as instituições que originaram
e foram originadas pelos núcleos (famílias, sítios,
estação, igreja, venda, futebol, etc.), conferiam
poder e importância, ou melhor, cidadania e honra individualmente
a praticamente todos. E reunidos num mesmo “espaço
de convivência” (como colocaram Scarlato(1992) e Von
Simson(1997)), acabaram por formar uma espécie de “espaço
público”, onde a vida e a realidade deles acontecia
e onde eles realmente existiam. E essas “instituições
camponesas” nada mais são que os “pontos de reunião”
a que Pereira de Queiroz(1973) se referiu. Foram elas que acabaram
por criar uma “cidadania baronense” na medida em que
eram instrumentos de fortalecimento das relações inter
e intra familiares, pelos sistemas de atração e repulsão
de moradores (identificando-os, aceitando-os, “doutrinando-os”,etc.)
e também pela criação de um novo núcleo
urbano isolado de Campinas e principalmente por corresponder a uma
rede de interesses econômicos mais ou menos iguais, mobilizada
por uma população com interesses mais ou menos comuns.
O engendramento de tantas relações de pertencimento
ao local (o “sentimento de localidade” de Cândido(1964)
só poderia resultar mesmo numa espécie de “naçãozinha”
como ele colocou.
aaaaaaEsse sentimento de “importância” e “pertencimento”
relativos a Barão Geraldo, pelo que pude perceber, nunca
foi sentido por eles (de uma forma generalizada) em relação
a Campinas. Em Barão o papel de cada um era o inverso do
que acontecia com eles quando iam para Campinas, onde passavam a
ser nada mais que anônimos camponeses “mascateando”
na cidade, e destituídos de “importância”,
de “pertencimento”, e assim de “cidadania”.
Sentimento esse que tinham em Barão, onde estavam suas casas,
sua comida, a maior parte de seu trabalho, sua infância, suas
brigas e brincadeiras, seus amigos e inimigos, suas namoradas, professora,
língua e outros códigos. Não eram “cidadãos
campineiros”, mas “cidadãos baronenses”,
na medida em que eram responsáveis e conhecidos por coisas
que talvez fossem tidas como “estúpidas” por
campineiros, como carregar um andor, tomar conta da linha do trem,
entregar cartas, “restar” cebolas para alguém,
etc.
aaaaaaDesde que chegaram, os descendentes dos imigrantes e migrantes
que iniciaram a ocupação ao redor da estação
Barão Geraldo sempre tiveram contato com Campinas. Apesar
de ser um contato apenas esporádico no início - devido
a formação inicial de uma produção de
subsistência - ele foi aumentando a medida que Campinas crescia
e para ela escoavam a produção agrícola.
aaaaaaMas foi em fins da década de 20 que os baronenses (assim
como outros sitiantes da região) começaram maciçamente
a vender seus produtos diretamente nas ruas e mercados de Campinas,
e portanto a tomar contato com ela. E todavia, em Campinas, eles
não eram os donos ou filhos dos donos da terra, não
possuíam famílias, não tinham casas, não
comiam bem e tampouco trabalhavam na terra. Eram simplesmente “vendedores”
- “mascateadores” - trabalhadores das ruas. Justamente
o contrário do que eram em Barão Geraldo.
aaaaaaCom a “chegada da primeira ponta de luz” em 1935,
a “chegada da Rhodia” em 1942, da Colônia Tozan
e a primeira loteação feita por Agostinho Páttaro
em 1943, - todas essas “chegadas” narradas pelos entrevistados
- é que foram, a meu ver, configurando a “situação
de contato” entre “progresso” e “bairro
rural”. Essa “chegada do progresso” se deu como
“negação” do mundo rural. Era preciso
reformá-lo, transformá-lo para que deixasse de ser
rural. O “progresso” que havia chegado a Campinas, estava
“chegando” aqui também.
aaaaaaAssim, sendo Campinas uma cidade que já tinha o “progresso”
e Barão Geraldo não, configurou-se uma situação
de caráter “contrastivo”. Dois lugares diferentes,
com características simbólicas diferentes, histórias
diferentes, “status” diferentes... configurando dois
grupos se relacionando “contrastivamente como complementares”.
E como diz Roberto Cardoso de Oliveira (1976), baseando-se em Barth,
é esse caráter contrastivo e etnocêntrico (já
que a idéia é “trazer o progresso prá
cá”) um “atributo essencial da identidade étnica”.
No entanto o contraste entre baronenses e campineiros não
é de natureza étnica, mas de outra concepção:
de formação cultural moderna porém anterior
à atual. Como se dois tempos de uma mesma sociedade entrassem
em conflito -como veremos mais tarde.
aaaaaaTal “contraste” entre Barão e Campinas
foi concebido a partir de um “código de categorias”
baseado num “sistema de oposições ou contrastes”.
Esse código está relacionado a modos de ação,
(formas de se vestir, de falar, formas de tratamento e de conduta,
regras de comportamento) - e eu coloco aí também,
padrões éticos e estéticos - que configuram
uma “teia de relações” entre relações
de “status” diferentes e que são baseados num
sistema de contrastes econômicos, sociais, morais, políticos,
religiosos, etc. À esse sistema de relações
é que Cardoso de Oliveira(1976) chamou de “cultura
do contato” “com graus de sistematização
e consistência entre valores diferentes que coexistem na mesma
cultura”. Um sistema de valores produzindo diferenças,
como diz Bezerra de Menezes (1993) .
aaaaaaÉ nesse sentido que tal contraste de sistemas e códigos
constitui uma “identidade contrastiva”, porque a luta
pela elevação a distrito configurou a “afirmação
dos baronenses diante dos campineiros”. E é essa “auto-apreensão
de si em situação que Cardoso de Oliveira diz também
que pode ser “manipulada em situações de ambiguidade”.
Pois elas abrem alternativas de “escolha” da identidade
“à base de critérios de ganhos e perdas”
que como ele diz pode ser surpreendida geralmente “na crista
de uma crise” - quando se abrem conflitos entre baronenses
e não-baronenses em festas, relações políticas,
jogos de futebol, ou seja, em situações de comparação
e competição. O que ele chama de “jogo dialético”.
Porisso é que para Cardoso, as identidades contrastivas são
como os mitos “da ordem do dircuso ideológico”,
pois possuem um “sistema ideológico de valores”.
aaaaaaAssim, a afirmação do grupo dos líderes
locais (como Hélio Leonardi e Guido Penteado Sobrinho) de
que Barão Geraldo possui uma “individualidade administrativa
e política” se constituindo como um “grupo unido
pela solidariedade de interesses de vizinhança” (como
colocaram Nilo de Castro(1976), Pereira de Queiroz e Antônio
Cândido), aproxima-se ou demonstra a idéia de Barão
como uma “naçãozinha”ou como um município
Ou seja , possuindo uma “história” e “interesses
municipais próprios”, configura-se uma “estratégia
discursivo programática” (como diz Cardoso de Melo,1993),
ou “um discurso”: “uma maneira de construir significados
que influenciam e organizam tanto nossas ações quanto
nossas concepções sobre nós mesmos” (como
disse Stuart Hall).
aaaaaaEsse discurso ideológico vê Barão Geraldo
como Benedict Anderson(1983) conceituou a nação: uma
“comunidade política imaginada, limitada e soberana”
ou uma “coletividade política descentralizada”
como o jurista municipal Nilo de Castro conceituou o município.
Isto é, dotadas de “autonomia”, devido a seus
traços comuns, sua homogeneidade e com interesse próprio.
E como disse André Melo, a questão da autonomia era
fundamental por seu “apelo simbólico” como uma
“elaboração discursiva mítica e apologética”.
Hall também vê histórias de origens míticas.
Assim como Levi-Strauss (1960) concebe os mitos.
aaaaaaAssim, a caracterização do bairro rural que
Antônio Cândido fez, como uma “naçãozinha”
é perfeitamente plausível se a compararmos com a conceituação
de Nilo de Castro: “uma pequena pátria, onde se exerce
as liberdades locais/individuais”. E quando lutaram pela “elevação”
a Distrito (e o verbo já diz tudo), o grupo de baronenses
estavam lutando para deixar de ser um “bairro rural”
e passar a ser uma “pessoa jurídica”. Ou em outras
palavras, lutavam por sua “cidadania” que não
possuíam no “progresso” de Campinas.
aaaaaaE como se não bastasse essa argumentação,
há o que considero o argumento chave da constituição
das identidades locais: a construção de uma “história”
local. Quando o grupo de Hélio, Guido e outros lutaram pela
“elevação” (e pela “vinda do progresso”)
eles estavam afirmando como Scarlato que “um bairro é
muito mais que um território com limites administrativos”,
pois trata-se do resultado de um conjunto de relações
sociais que passam pela conscientização histórica
de pertencer a uma localidade (cujos limites se definem por um grau
de relações num mesmo cotidiano, num clima de cumplicidade
e relações de vizinhança” - os mesmos
“graus de relações que Pereira de Queiróz
enumerou em seu trabalho). E ele diz que esse sentimento de identidade
local fundamenta-se “através de representações
simbólicas”.
aaaaaaNa construção de tais “representações
simbólicas coletivas” o tempo e a intensidade de vivência
no lugar - como o constante cruzar das ruas - são, segundo
Olga Von Simson, fundamentais para criar símbolos que retratam
a comunidade. Isto é, ela reafirma a centralidade da história
local construída, no processo da criação e
imaginação da identidade local, ao dizer que essa
construção se dá “ao longo da produção
da própria vida em comunidade”, i.e., da história
vivida pela comunidade.
aaaaaaEmbora perceba a história e a identidade baronense
como uma “tradição inventada”, no sentido
proposto por Hobsbawm, creio poder inverter a explicação
dele: No caso de Barão, trata-se de uma tradução/concepção
tradicional camponesa do mito do “progresso”, que é
um dos mitos fundantes da cultura moderna. Uma forma tradicional
de entender a modernidade. Vejamos:
aaaaaaHobsbawm entende como “tradição inventada”
“...um conjunto de práticas rituais ou simbólicas,
normalmente regulada por regras, para inculcar certos valores e
normas de comportamento através da repetição”
implicando sempre uma continuidade com o passado. (Hobsbawm,1984;9).
No entanto, essa forte referência ao passado, é vista
por Hobsbawm como uma construção bastante artificial.
São “reações à situações
novas” que ora se referem a situações anteriores
ora estabelecem e repetem, quase obrigatoriamente, concepções
de seu próprio passado. Diferente do “costume”
e das “rotinas”, é essencialmente um processo
de “formalização e ritualização”,
utilizando elementos antigos, mas inscrito na cultura moderna. E
Hobsbawm espera que, com o atual processo de globalização,
ela ocorra cada vez com maior frequência, pois as rápidas
transformações globalizantes “destroem os padrões
sociais anteriores, para os quais as velhas tradições
foram feitas, produzindo novos padrões com os quais tais
tradições são incompatíveis” (Hobsbawm,1984:12)
O que fez com que os movimentos políticos e ideológicos
(como o nacionalismo) tornassem necessária a invenção
de uma continuidade histórica.
aaaaaaHobsbawm diz que é preciso estudá-las porque
são “sintomas importantes”, que indicam problemas
que normal mente não poderiam ser detectados; “são
indícios, pistas. E seu estudo não pode se separar
do contexto social mais amplo”. Além disso elas esclarecem
mais detalhes das relações humanas com o passado,
onde a História às vezes, é o próprio
símbolo do conflito; “todas elas utilizam a história
como legitimadora das ações e como cimento da coesão
grupal... todas são elementos que baseiam-se em exercícios
de engenharia social, ...sempre inovadores...pois a originalidade
histórica implica inovação” (Hobsbawm;1984:21/22)
aaaaaaMas construir tradições não é
apenas um “sintoma” da (re)construção
ou (re)afirmação de identidades. É um “ato
de “traçar fronteiras” como já disse Barth.
aaaaaaNão é à toa que os movimentos municipalistas
sempre foi construído em cima dessa conotação.
Ao dizer que o “município” é uma ”situação
intermediária entre o Estado e a Família”, o
jurista Nilo de Castro se aproxima novamente dos dizeres de Cândido
e Queiróz. E ao dizer também que o município
tem origem histórica (como Guillermo Rúben diz da
nação) e interesses próprios (exercer seu próprio
poder, homogeneidade, etc.) impregnado de “jus naturalismo”
ele está dizendo que é uma “mini-nação”.
Assim como a nação essa identidade local pode ser
vista de dois modos: como “natural” ( a “naturalidade”
formada pelo jus naturalismo) e o “cultural” (“compartimento
de uma série de valores e tradições próprias,
geralmente históricas e religiosas comuns”) como vê
Guillermo Rúben. Assim como ele, suponho que a identidade
local - a “naturalidade” possui dois aspectos: “historicidade”
e um “processo social” (logo, em sentido marxista, também
“histórico”).
aaaaaaEssa “naturalidade” também pode ser vista
como um “conjunto de atributos particulares e únicos”,
como ele diz, que estabeleça na comunidade um auto-reconhecimento
e também diferenças e contrastes com outras naturalidades
(da mesma forma que Barth e Cardoso formulam a teoria da identidade
étnica = por auto atribuição e pela atribuição
pelos outros). Ou como diz Hall, como um “conjunto de significados”
produzidos por uma “comunidade simbólica” (a
nação) e que assim como Rúben, ele também
vê que o nacionalismo defende um patrimônio cultural/tradicional
próprio daquela comunidade “e que se reduz a uma série
de valores sagrados providos de certo misticismo”. Ou “histórias
de origens míticas” como vê Hall.
aaaaaaOra, a identidade local - que chamo de “naturalidade”
- é assim como Anderson entende a nação: “resultado
de um cruzamento complexo de forças históricas...
produzido pela erosão das tradições religiosas,
e que depois de criados, tornaram-se modulares”. E se Anderson
vê as raízes da nação nas “comunidades
religiosas” e nos “reinos dinásticos”,
também vemos claramente a naturalidade baronense - assim
como a maioria delas - enraizadas numa comunidade religiosa. E apesar
de não ver aí a outra raíz ( do reino dinástico),
o que nos revela o apelido “carinhoso” que os funcionários
da Prefeitura de Campinas deram a Barão, ao chamá-lo
de “principado”? aaaaaaCertamente a idéia de
um lugar pequeno e “arcaico”, que luta por sua autonomia.
aaaaaaEntretanto, assim como Stuart Hall acha das “culturas
nacionais” e do “nacionalismo”, acreditamos que
a “naturalidade” (no caso a baronense) é também
um discurso e que também como ele diz, constróem significados
contidos nas histórias, memórias e imagens dela também
construídas.
E como ele propôs, a identidade local - ou naturalidade -
também cria diversas “estratégias discursivas”
- como as que citei acima - e como as que ele cita: a) a narrativa
do lugar - da nação local de Barão como colhi
nos depoimentos dos moradores; b) a ênfase nas origens, na
continuidade, tradição e atemporalidade de Barão;
c) a invenção da tradição (no caso a
baronense) d) um mito fundante - “a contra-narrativa que pré-date
as rupturas da colonização” - assim como César
Nunes caracterizou a lenda do Boi Falô. Sem sombra de dúvida,
o “mito fundante” de Barão Geraldo; e) A idéia
de povo “puro” e “original” - que não
é o caso de Barão, mas que é “exacerbada”
(como diz Bezerra de Menezes), quando colocada em confronto com
os interesses de outros moradores de Barão que vieram aqui
morar após a chegada da Unicamp.
aaaaaaÉ nesse sentido é que penso, que todo aquele
auge do movimento municipalista dos anos 40/50 se confundiu com
o auge do nacionalismo da época. Como processos “congênitos”,
nacionalidade e naturalidade visavam construir essências coletivas
já que eram - e ainda são - requisitos mobilizadores
e ... garantidores de voto.
aaaaaaMesmo não sendo um "município", Barão
Geraldo configura-se, a meu ver como uma "cidade". Além
de possuir uma base economica que se reivindica própria do
local, de possuir um "bairro central organizado e de dezenas
de bairros que circulam e se reivindicam em seu entorno, os moradores
construíram uma história local própria, e muitos
de seus moradores reivindicam uma identidade e uma naturalidade
"baronense" de pertencerem a Barão, no sentido
de se diferenciarem daqueles moradores que vieram de outros municípios.
aaaaaaA própria história que os antigos moradores
de Barão Geraldo - os que se reivindicam "baronenses"
- contam, é uma história marcada pela luta pelo "progresso",
como crença de que com ele, melhoraria substancialmente sua
própria "qualidade de vida". Essa busca do "progresso"
serviu como argumento de fundo para a concepção e
a tentativa da emancipação de Campinas, a partir dos
anos 60.
aaaaaaaEm meio à essa luta pelo "progresso" local,
uma dos movimentos em que os baronenses também se engajaram
foi pelo estabelecimento em Barão Geraldo da Universidade
de Campinas - a Unicamp - que depois de muitos anos de negociação,
instalou-se em um enorme terreno doado em Barão Geraldo em
1966, circundada pela principal condição da doação
desse terreno: o gigantesco loteamento denominado "Cidade Universitária
Campineira".
aaaaaaEnquanto a Unicamp se instalava no local, os baronenses prosseguiam
na luta pelo "progresso", atraindo indústrias,
escolas, bancos, empresas, lojas comerciais em geral, abrindo inúmeros
loteamentos, se mobilizando por melhorias urbanas (como água,
esgoto, asfalto, telefone, etc.), até mesmo aliando-se aos
representantes do governo autoritário para conseguir melhorias
em suas condições de vida.
aaaaaaPorém, ao mesmo tempo, observavam a implantação
da Unicamp, da Puccamp, do CEASA, do Hospital das Clínicas,
de inúmeras indústrias como se fossem uma “dádiva”
divina ou da natureza, e que foi determinante na discussão
da emancipação, da identidade local, etc. Seus antigos
desejos vinham sendo atendidos: O progresso “que ninguém
pode parar” continuava chegando e transformando Barão
num outro mito: o de “Bairro Privilegiado”: O único
que conseguia unir e conciliar “progresso” e a “tranqüilidade”
das cidades do interior.
aaaaaaTodavia, sem que os baronenses percebessem, essa vinda do
progresso trouxe com ele seu maior desafio, sua maior contradição:
Para conseguir vender os inicialmente baratos e desacreditados terrenos
da Cidade Universitária "Campineira", corretores
baronenses e campineiros utilizaram-se da estratégia de dirigir
suas vendas a setores sociais identificados com a Universidade:
Indivíduos e famílias da classe média alta
paulistana e campineira, que buscavam investir num local identificado
de "alto padrão": proximidade da Universidade,
da "natureza" e da tranquilidade de cidade do interior,
um lugar calmo, pacato, longe da poluição e da correria
da cidade grande e que no futuro certamente se transformaria num
ambiente "melhor" do que aquele em que viviam.
aaaaaaA estratégia de venda - juntamente com a perspicácia
política do reitor Zeferino Vaz em desenvolver a Unicamp
como uma universidade de nível primeiromundista - resultou
amplamente satisfatória e em pouquíssimo tempo, praticamente
toda a primeira fase da Cidade Universitária Campineira estava
vendida. Razão pela qual seus proprietários articularam
a segunda fase - ainda maior que a primeira - e ainda hoje em fase
de negociação
aaaaaaOs novos moradores demoraram para se instalar em Barão,
mas foram chegando aos poucos. E em pouco tempo os baronenses perceberam
o quão diferentes eles eram e o quão distante eles
se manteriam. Aos poucos, eles foram se implantando, se conhecendo,
se organizando culturalmente e também aos poucos, foram deixando
claro para que vieram: Para cumprir à risca as promessas,
imagens e valores usados como "estratégia" para
atrai-los.
aaaaaaDesde então, baronenses e novos moradores demonstram
conviver em conflito, de diferentes modos de vida, com diferentes
costumes, valores, idéias e gostos, tentando implantar concepções
de "cidade" completamente opostas. Essa conflitividade
entre esses dois (principais) grupos culturais de Barão Geraldo
projeta-se no comportamento cotidiano atual da cidade. E parecem
fomentar territórios e nichos diferentes de sociabilidade,
lazer e trabalho, de expressão e simbolização
do mundo, criando “corpus” que parecem conviver paralelamente,
competindo entre si, mas tentando negarem-se um ao outro e principalmente,
não se encontraem, como se houvesse a ameaça e a eminência
de um embate, de uma disputa física.
aaaaaaÉ da convivência entre concepções
ideológico-culturais diferentes que se origina comportamentos
e processos de violência social?
Tais relações conflituosas lembram bastante as teorizações
sobre a “identidade étnica” e das “fricções”
de suas “fronteiras” analisadas por Fredrick Barth,
Pierre Bourdieu e Roberto Cardoso de Oliveira entre outros autores.
aaaaaaBourdieu (1989) afirma que as identidades regionais ou étnicas
são “objetos de representações mentais
e objetais” e uma “forma particular da luta das classificações”.
Isto é são “ideologias”. Seu texto crítico
sobre as identidades regionais e étnicas pode ser usado claramente
para retratar a história baronense quando diz que as lutas
pela identidade étnica ou regional dizem respeito a “propriedades
ligadas à “origem” (e do lugar de origem) e de
seus “sinais duradouros”. aaaaaaSegundo Bourdieu, o
que está em jogo nessas lutas é o poder de impor uma
visão do mundo social da di-visão e ao se imporem
realizam o sentido e o consenso sobre o sentido e sobre a unidade
e a unidade do grupo. (Bourdieu;1989:113)
aaaaaaÉ significativo que para Bourdieu traçar fronteiras
é um “ato religioso”, e sempre realizado por
autoridades. A mesma religiosidade vista por Nisbet em sua “História
da Idéia de Progresso”. Porém, diz Bourdieu,
ao traçar fronteiras, os grupos produzem diferenças
culturais mas ao mesmo tempo elas são produtos dessas diferenças.
Afinal a identidade é produto e produtora da dinâmica
História.
aaaaaaAssim o discurso da identidade - étnica ou regional
- para Bourdieu é um discurso “performativo”
que busca impor como legítima uma nova definição
das fronteiras, para divulgar e fazer reconhecer uma região
ou uma etnia desconhecida contra as definições dominantes,
reconhecidas e legítimas que a ignoram. Porém, diz
o autor, sua eficácia é proporcional à autoridade
daquele que a enuncia. É um ato de “magia social”
para “trazer à existência uma coisa nomeada”,
e que dependendo do poder de quem a realiza, pode impor uma nova
visão a uma nova divisão do mundo social e consagrar
um novo limite: “um ato mágico...pelo qual o grupo
prático, virtual, ignorado, negado, se torna visível,
manifesto, para os outros grupos e para ele próprio, atestando
assim a sua existência como grupo conhecido e reconhecido,
que aspira à institucionalização.” (Bourdieu;1989:118)
aaaaaaPara mim esse é exatamente o caso de Barão Geraldo:
“tornar-se visível”. Além disso, produzir
identidades nesse contexto, seria produzir “cidadania”,
num contexto em que as construções ideológicas
- de tradições ou de identidades - são vistas
como produções de uma “cidadania universal”,
já que, em tese, estão produzindo “campos de
luta e de poder”, como diz Bourdieu, como única forma
de sobreviverem num mundo de transformação contínua
de significados, culturas e fronteiras híbridas, descentradas,
intersticiais, flúidas, etc. Um mundo em transição
para um futuro onde a ênfase da cultura parece se dar cada
vez mais no terreno do simbólico, da interpretação
e da cultura - e da fluidez; deixando de lado a ênfase no
econômico, na razão prática e nas estruturas.
Pelo menos parece ser esta a tendência.
Identidade e História: Ideologia ou
Cultura ?
aaaaaaAo concluir a redação
da pesquisa, deparei-me inicialmente com uma conclusão pouco
ou nada reveladora e satisfatória, comparando-a a seu objetivo
inicial: a construção da identidade e da história
baronense seria então uma construção ideológica,
para explicar os motivos que levam e levaram os baronenses a tentarem
se emancipar de Campinas e também a se contraporem às
novas concepções de planejamento urbano defendidas
pelos novos moradores (liderados por “ambientalistas”),
fundadas numa outra ideologia: a da “preservação
da qualidade de vida”. Como nosso objetivo era entender as
razões dos baronenses, foi necessário retomar a discussão
do conceito de ideologia e relacioná-lo com o conceito de
cultura. Como existem inúmeros, escolhi apenas dois autores
e relacioná-los entre si.
aaaaaaSe em Barão Geraldo percebe-se hoje duas concepções
dominantes e opostas de “progresso”, é interessante
notar como o pensamento e o conhecimento estão sempre marcado
por dualidades. Mesmo ao se contrapor autores diferentes - geralmente
dois - cada um deles propõe geralmente duas concepções
opostas de realidade. Seria um artifício de lógica?
Ou um vício ideo-lógico como apontado um dia por Lévi-Strauss?
aaaaaaPara variar, há pelo menos duas formas principais de
se compreender o que é “ideologia”. Para levar
em consideração o viés marxista, preferi abordar
um texto de Marilena Chauí sobre a relação
entre ideologia e história que se dá através
da concepção de “identidade”. Comparei-o
com o texto de Marshall Sahlins mostrando a relação
que existe entre os conceitos de “estrutura” e “história”,
- ao invés de se excluírem - onde ele aborda uma outra
concepção de história, cultura, ideologia,
e identidade.
aaaaaaAo final, comparei-os com um terceiro texto com influências
dos dois anteriores que a meu ver, além de surgir como uma
alternativa ao eterno debate entre materialistas e simbolistas,
trata diretamente da questão que abordo: a construção
da identidade em bairros, vilas e cidades periféricas na
região de Campinas, com forte influência de imigrantes.
aaaaaaÉ interessante notar como uma outra pesquisa feita
por outros pesquisadores do mesmo Centro de Memória em dois
diferentes bairros de Campinas (Cambuí e Vila Industrial),
chegou a conclusões tão próximas da que cheguei,
apesar de não ter participado do “Projeto Bairros”
do C.M.U. Escolhi a caracterização dualista proposta
pela organizadora e coordenadora da pesquisa, Olga Von Simson, para
sintetizar também minha pesquisa, porque no meu entender
ela recupera e traduz uma tipologia ideal num sentido muito próximo
ao colocado por Chauí e Sahlins.
E nesse sentido, conforme o relatório, a pesquisa alcançou
resultados díspares: Enquanto na Vila Industrial (antigo
“bairro proletário”) a pesquisa teve ótima
aceitação, no Cambuí (considerado “alto
padrão” pela misteriosa hermenêutica imobiliária)
a pesquisa foi recebida com indiferença e desprezo. Tal disparidade,
só poderia mesmo originar uma interrogação.
aaaaaaBaseando-se em alguns textos sobre a “identidade de
bairro”, Von Simson concluiu que o sucesso alcançado
na Vila Industrial deveu-se às “condições
historicamente vivenciadas” por seus moradores, que segundo
ela “...durante mais de um século haviam se mantido
relativamente isolados do restante da cidade, pela barreira imposta
pelos trilhos das ferrovias”. Paralelamente, a autora atribuiu
o “insucesso” do Projeto no Cambuí, à
uma “desvinculação com o passado” de seus
moradores “fruto da intensa troca de população
que tal bairro sofreu durante sua história recente”.
(pg.2), já que os antigos moradores não desejavam
falar de um bairro totalmente diferente daquele que viveram 50 anos
antes e os novos também não tinham interesse de falar
do passado para não admitirem “suas origens ligadas
a setores mais populares da cidade”.
aaaaaaPara tentar explicar essa disparidade no resultado da pesquisa,
Von Simson baseou-se em dois textos para fundamentar sua conclusão:
Os dois tratam da questão da formação da identidade
na contemporaneidade pós-industrial e suas transformações
ainda hoje não bem explicadas por nenhum autor e sem consensos
diretos.
aaaaaaFalando sobre identidade nas cidades, Carlos Fortuna diz que
hoje em dia, nas situações do cotidiano, “os
sujeitos atuam de acordo com suas competências identitárias”.
Identidades essas que não são mais estáveis
e rígidas, mas que se tornaram transitórias, plurais
e auto-reflexivas, isto é “contingentes”; As
identidades são por ele entendidas como “expressões
compósitas de intersubjetividades”, e as fronteiras
entre fatores internos e externos tornaram-se “impossíveis
de decifrar”
aaaaaaa“são objeto de escolhas e de possibilidades
individuais, feitas de acordo com a própria percepção
da estrutura de relações sociais e, portanto, desencadeadas
em função dos recursos disponíveis e dos efeitos
previsíveis; mediadoras entre a estrutura social e a ação
dos sujeitos, as identidades sociais são feitas e refeitas
ao sabor das mudanças sociais e das novidades culturais,
deixando-se pautar por uma progressiva interiorização
de pulsões e constrangimentos eminentemente relacional e
interativa, perante a crescente complexificação das
sociedades, a identidade moderna mostra-se contingente e remete-nos
a uma estrutura pessoal, afetiva e cognitiva que é progressiva
e continuamente (re) construída pelos sujeitos”.
aaaaaaTambém falando sobre o contínuo reajuste da
identidade na “pós-modernidade”, a antropóloga
Celeste Mira diz que hoje, convivem na sociedade “formas diversas
de identidade”: sendo elas: as “identidades de tipo
tradicional”, que são únicas e auto-centradas”,
com influências iluministas (?) e as “novas formas de
identidade” que são descentradas, plurais e deslocadas.
Celeste Mira diz que com a mundialização, tanto as
antigas quanto as novas identidades mais fluidas “surgem fortemente
reafirmadas como respostas a processos de exclusão social”.
aaaaaaAssim, Von Simson explica que a disparidade de resultados
entre a Vila Industrial e o Cambuí corresponde a “tipos
diversos de identidade” i.e.: “enquanto entre os moradores
da Vila Industrial estaríamos nos deparando com uma identidade
de bairro de tipo tradicional, (única e auto centrada) no
Cambuí a identidade predominante seria de caráter
plural, múltiplo e conjuntural, a forma típica identitária
da pós-modernidade que seria produzida por sujeitos descentrados”.
aaaaaaO Cambuí - o espaço mais globalizado da região
- com sua “ausência do processo de exclusão explícita”-
não necessita desenvolver a “identidade tradicional”
(baseada na forte ligação com a vida e a história
do bairro) mas ao contrário, obedecer e copiar os novos padrões
e modelos de luxo do comércio internacional: “...nessa
nova lógica, o fato de ser campineiro não provoca
muito interesse. O que importa é poder consumir os mesmos
produtos dos londrinos ou novaiorquinos, ostentando as griffes internacionais
famosas ou circular pelo bairro dirigindo o carro importado”.
aaaaaaJá na Vila Industrial, “tradicionalmente pouco
importante aos olhos do poder público”, Von Simson
diz que os moradores procuraram, através da pesquisa, “reafirmar
a diferença” com os outros bairros de Campinas, valorizando
seu passado e (em “parceria” com os pesquisadores) tentaram
reconstruir suas raízes, para, dessa forma, “responder
à intensificação do processo de exclusão
sócio-econômica e cultural” que vivemos na contemporaneidade.
aaaaaaSe fizéssemos um “esquema” de comparações
entre as concepções de Chauí, Sahlins e Von
Simson, podemos perceber uma única assertiva sintetizadora
e um “senso comum”entre os 3 autores: a história
é uma “constante experiência”, reformuladora
(constante) das concepções apriorísticas da
cultura, e responsáveis pela mobilização das
ações humanas (logo, históricas) .
aaaaaaÉ muito reveladora a semelhança de sentido entre
essas diferentes concepções. Para mostrar a relação
que existe entre a ideologia e a cultura preciso agora interligá-las.
Pode até terem significados diferentes mas é evidente
que tratam do mesmo assunto.
aaaaaaQuando Marilena Chauí diz que nas “sociedades
históricas” a questão de sua “origem”
não é apenas um problema teórico mas “sobretudo
uma exigência prática renovada ”, ou quando diz
que a temporalidade é uma “questão aberta...
incessantemente reposta por suas práticas”, não
estaria dizendo o mesmo que Marshall Sahlins quando ele diz que
“toda práxis é teórica, sempre iniciada
nos valores a priori da cultura”, ou quando diz que “a
cultura é históricamente reproduzida...” e também
“alterada na ação” ? Não é
uma concepção muito próxima da afirmação
de Sahlins de que a história é ordenada pela cultura
e vice-e-versa? Não teria uma significação
semelhante àquele conceito de “destruição
criadora” de Schumpeter (recuperado por Fortuna/Von Simson)
que seria a “contínua reelaboração de
critérios de avaliação pública..., variável
de acordo com a conjuntura”?
aaaaaaQuando fala em “sociedades míticas ou teológicas”
e sua “petrificação do tempo” imobilizando
suas estruturas, Chauí não está dizendo o que
Sahlins chama de “estruturas prescritivas”, i.é.,
que a ordem cultural pré-existente é quem determina
as ações e relações? Essa mesma “petrificação”
imobilizadora não é o mesmo que pretende a “ideologia”
nas sociedades propriamente históricas?
aaaaaaSe para Chauí a “problemática” da
história é determinar a fundação da
sociedade e do poder pela ação dos homens (e não
de um poder exterior) que ao “superar” esse “anteparo”
teológico cria um “corpo de representações
e normas”, ela está também dizendo que os mitos
de origem e o “poder anterior/exterior” são também
“ideologias”, e que essas sociedades não são
históricas, mas “pré” históricas.
aaaaaaEvidentemente, a problemática aqui são de “tipos”
de sociedade e é claro, tipos “dominantes”, i.
é., que dominam os outros “tipos”. São
tipos que convivem em todas as sociedades e portanto, em relação
dialética dualista!
aaaaaaAssim como disse Chauí, o “anteparo mitológico”
como a “ideologia” são petrificações,
imobilizações da “história real”
que se modifica continuamente, tentando “neutralizar”
com a “fixação de conteúdos” (mitos?),
tidos como “essências”, que “garantem identidade,
repetição, permanência e até as transformações!
aaaaaaOra, claro está, que aqui ela se refere à culturas
com “estruturas prescritivas” proposto por Sahlins que
“tentam transformar as circunstâncias e contingências
conjunturais” para assimilar à sua significância,
à si mesmas, negando o caráter contingente eventual.
São sociedades de “identidade tradicional” (únicas
e baseadas na memória e na história local) que reforçam
a história local para explicar a situação em
que vivem.
aaaaaa E uma dessas “essências” ideológicas
que procuram “imobilizar” a história real é
justamente a idéia de “progresso e desenvolvimento”
- que é central ao se falar em Barão. Essa “essência”
tenta explicar a história não como transformação
ou criação, mas como “crescimento” em
direção à “perfeição”,
enquanto “destino”. Exatamente o debate que ocorre em
Barão.
aaaaaaEntretanto - e isso é um “insite” muito
importante de Chauí - a idéia de progresso e desenvolvimento,
como diz a autora, “representa o desejo metafísico
de identidade... e uma saída ao medo da desagregação”,
idéia essa que “reforça-se na experiência
cotidiana”. Ou seja: “assimila as circunstâncias
contingentes ou à “conjuntura” o que é
justamente a característica que Sahlins dá às
“estruturas performativas”, ou que Fortuna/Von Simson
dá as “identidades contingentes” dos bairros
globalizados.
aaaaaaAssim, Chauí está dizendo que as “ideologias”
e essências explicam as mudanças por suas continuidades,
conforme Saussure, numa “síntese entre estabilidade
e mudança” que nada mais é que a característica
que Sahlins dá à ”cultura”. Ora, se diz
que a ideologia “reforça-se na experiência cotidiana”
(como na questão das origens) Chauí está dizendo
então - e também - que a cultura “se reproduz
e é alterada historicamente na ação”,
como diz Sahlins e como naquele fragmento de texto de Fortuna.
aaaaaaAparentemente uma contradição, quando Chauí
diz que a ideologia tenta paralisar a “história real”
(conceituada por ela como “o social e o político instituindo-se
a cada passo” - mas que, porém, “reforça-se
na experiência cotidiana”, ela está dizendo também
que a ideologia assimila-se à conjuntura, reformula-se ou
modifica-se para continuar dominante. Quer dizer: a história
é uma experiência constante, reformuladora e modificadora
de “verdades”. Só que, mais uma vez repetindo
Saussure, “as mudanças se baseiam no princípio
da continuidade”.
aaaaaaÉ nesse sentido que “ideologia”e “cultura”
se aproximam como sinônimas: Chauí conceitua “ideologia”
como “conjunto coerente e sistemático de imagens ou
representações tidas como capazes de explicar e justificar
a realidade concreta” e Sahlins conceitua a “cultura”
como conjunto de relações significativas entre categorias”
e que “organizam a situação atual em termos
de passado”.
aaaaaaMas não é só aqui que cultura e ideologia
se identificam: Se continuarmos a explorar as palavras trocando
uma pela outra, o significado continua o mesmo: Podemos dizer que
“a história é ordenada ideologicamente”
e que a ideologia é “ordenada historicamente”,
como dizer que a cultura é um “corpo de representações
e normas”. Como é uma “ordem virtual”,
na cultura o “aparecer” é o “ser”.
Seu “processo oculto” é o ingrediente, o mecanismo
básico para que continue sendo “cultura” - governada
e governadora das “relações simbólicas”.
aaaaaaÉ esse “processo oculto”: As “relações
simbólicas” que garantem “significância”
aos eventos históricos enquanto “estrutura de conjuntura”,
que recusa a desidentificação com a história
. Pois como diz Sahlins na ação simbólica,
sincronia e diacronia coexistem numa “síntese indissolúvel”
aaaaaaPorém é claro que há uma contradição/diferença
fundamental entre as concepções de Chauí e
Sahlins: Enquanto Chauí parte de um ponto de vista moderno
para dizer que a ideologia é a explicação da
realidade a partir das “tradições” (diga-se
“inventadas”), Sahlins parece entender e partir de uma
concepção tradicional para explicar que a cultura
é a explicação da realidade a partir das tradições.
aaaaaaChegamos novamente à dualidade tradicional/moderno
que há séculos norteia o pensamento (erudito) humano.
E é por isso que entendo ter se dado em Barão Geraldo
a mesma dualidade de identidade que se percebeu na pesquisa do “Projeto
Bairros”: Se Barão Geraldo desenvolveu uma identidade
de “tipo tradicional” para se reafirmar e responder
ao processo de “exclusão” que é próprio
da tal globalização, a Cidade Universitária
- e também a história atual de Barão - desenvolveu
uma identidade cosmopolita, “contingente”, plural, descentrada
e conjuntural para, ao contrário, “vivenciar”
a globalização
aaaaaaPorém após toda essa discussão, não
fica a impressão de que estamos “andando em círculos”
? Ou melhor, que são discussões diferenciadas sobre
uma mesma questão, os mesmos tipos ideais, as mesmas relações
“história-identidade”/“ideologia-cultura”
(e vice-e-versa)? Talvez mesmo, formas diferenciadas de tratar do
mesmo objeto.
aaaaaaAssim, gostaria aqui de fazer um precipitado
ensaio de “estilo estruturalista” para mostrar que tal
jogo de relações poderia se fundamentar numa “equação
de razões” (sic) lógicas de relação
dinâmica e quadrangular entre duas novas dualidades que também
poderiam ser invertidas:
IDENTIDADE IDEOLOGIA = (Petrificações)
HISTÓRIA CULTURA = (Dinâmicas)
aaaaaa
aaaaaa Assim a “identidade” estaria para a “história”,
assim como a “ideologia” estaria para a “cultura”.
Ou seu inverso também pode ser tomado: a ideologia para a
história assim como a identidade para a cultura. E assim
seria-nos fornecido um novo esquema:
IDEOLOGIA IDENTIDADE
HISTÓRIA CULTURA
aaaaaaEvidentemente, estes esquemas indicam
que tais “idéias abstratas” podem ser partes
ou diferentes faces de uma mesma realidade ou de uma mesma existência,
mas que reúnem diferenças de sentido quase imperceptíveis
entre si.
aaaaaaDaí que, se examinarmos com mais sutileza tais relações,
(poderemos) ver que o que está por detrás dessas sobreposições
de instituições abstratas é ainda a antiga
contraposição “tradição X modernidade”
de visão/explicação do mundo, que inúmeros
autores vivem narrando.
Numa concepção mais tradicional, com certa influência
iluminista, enquanto a história seria uma “produtora
de identidade”, a ideologia seria considerada um “produto”
ou fruto da cultura. Já numa concepção mais
moderna, a relação se inverteria: a história
produzindo ideologia e a cultura produzindo identidade.
aaaaaaColocando melhor: numa concepção de tipo tradicional,
todas as coisas são percebidas e entendidas a partir de uma
“essência” e como uma “essência”.
Ideologia, Cultura, História e Identidade são todas
“essências” (universais?) que conferem uma característica
existencial às coisas e pessoas. Afinal para a tradição
a realidade só pode ser entendida se a existência for
“eterna”. Já numa concepção de
tipo moderna, todas as coisas são percebidas e entendidas
a partir de uma “dinâmica” ou vivenciando uma
“transformação constante”.
aaaaaaAssim, nessa concepção, Ideologia, Cultura,
História e Identidade são todas “dinâmicas”,
todas “diacrônicas”, todas estão em transformação
constante, nunca iguais. Daí que se poderia “esticar
um contínuum” entre esses dois tipos ideais “tradição/essência”
e “moderno/dinâmico” para explicar a diferença
entre essas concepções. Assim Chauí e Sahlins
seriam autores “modernos” pois todos dois acreditam
numa realidade e num cotidiano “dinâmico”, porém
Chauí, como defensora das transformações modernas
consegue perceber mais claramente as “essências”
ideológicas do pensamento tradicional, enquanto Sahlins,
como defensor das tradições culturais, consegue perceber
as “dinâmicas” em transformação
do pensamento moderno (estruturalista, marxista, etc.).
aaaaaaAssim, não seria mais cabível ver as quatro
instâncias como causas e respectivos efeitos umas das das
outras, ou como partes ou campos diferentes de uma mesma realidade?
Também não poderíamos assim conceber as quatro
instituições como “sinônimas”, pelo
menos nesse caso? Mas e se for esse o caso norteador dos outros
casos?
aaaaaaPorém no meu entender, o que as pessoas querem viver
é justamente a “ideologia” que elas chamam de
“cultura”. Não é à toa que Marx
pouco falou em cultura, para falar em “consciência”
e em “ideologia”. Tampouco não é à
toa que hoje, nas ciências humanas, a ideologia é vista
como “o outro nome da cultura” - como ressaltou recentemente
Joanna Overing, num texto sobre a relação mito/história
do povo Piaroa, da Amazonia Colombiana.
aaaaaaRetorno aqui à concepção de identidade
de Christina Rubin que defendo aqui. Rubin diz que o tornar-se membro
da comunidade acontece “em função do sentimento
de identidade, participação e do não estar
só no mundo”, quer dizer, sua necessidade é
de “participar” de uma “comunidade ideológica”
para que assim, possa se tornar um “indivíduo”.
Amplio essa concepção para “qualquer tipo”
de “comunidade simbólica” (não apenas
religião, mas também nação, etnia, sexo,
time de futebol, naturalidade - a identidade local - profissão,
partido, ou como campo de conhecimento, etc. - muito ligado àquela
concepção de “lutas das classificações”
defendida por Bourdieu no “Poder Simbólico”)
. Movendo a necessidade de cada um em fazer escolhas para “não
ficar sozinho”.
aaaaaaSegundo ela a razão que leva as pessoas a participarem
de uma comunidade é a necessidade de uma “segurança
simbólica” que o coloque e lhe explique o mundo. Porém
como ela diz no final, é uma “identidade ilusória”
que se busca em momentos de crise. “Nos momentos de crise,
as pessoas buscam mais sentidos porque, frente à total falta
de perspectivas no campo material, o que resta é a esperança...
e a fé no amanhã, que precisa ser justificada através
de razões simbólicas porque é nesse campo que
podemos encontrar, na maioria das vezes, a identidade que a sociedade
nos nega”.
aaaaaaTodavia, como vivemos numa sociedade em crise eterna, onde
a crise é a sua essência e que só se entende
“sociedade” quando em crise, essa busca de “identidade
ilusória ” (ilusória porque fundada em razões
simbólicas) torna-se um processo rotineiro, cotidiano e “natural”
(como uma “naturalização” moderna da modernidade),
a busca da identidade torna-se uma necessidade humana natural e
cotidiana, isto é, isso modifica o conceito entendido por
Rubin. A identidade passa a ser assim o “resultado de uma
simples escolha de crença” em alguma comunidade ideológica
(no caso dela, Igreja), seja qual for essa comunidade. Claro que
na escolha dessa comunidade em que acreditar, o dado decisivo na
“escolha” é a “importância”
que cada um ganha naquela comunidade. Quanto mais se sente importante
na comunidade, maior a possibilidade de decidir-se por acreditar
e lutar por aquela comunidade. É isso pelo menos, que percebi
em Barão Geraldo.
aaaaaaEssa concepção nos ensina a reconhecer que uma
das grandes formas de mobilização das pessoas - talvez
a mais importante e eficiente delas atualmente é a que Rubin
chamou de “segurança simbólica”, traduzida
numa forma de congregação de ajuda mútua entre
as pessoas, “que precisa ser justificada através de
razões simbólicas” que é onde “podemos
encontrar, na maioria das vezes, a identidade que a sociedade nos
nega”. Isto é , Rubin mesma concorda com Chauí,
que a realidade não é simbólica, mas contraditória
e que razão simbólica é ilusória, não
é real, mas ao contrário tenta enganar o real.
aaaaaaSó que elas mesmas reconhecem que o que as pessoas
preferem viver é a ideologia, a ilusão da concepção
marxista, que para elas é a realidade. Rubin diz que tais
igrejas (podemos entender aí as formas de “identidades”)
conseguem arrebanhar tanta gente “porque iludem” . Diz
Rubin que se as pessoas precisam de participação,
identidade e salvação, é que essas três
coisas significam a “localização do ser no mundo,
no tempo e no espaço”, pois a vida continua, não
estaremos sós, não passaremos por ela “incógnitos
ou despercebidos, nem seremos esquecidos”(1991:106). É
ela mesma quem diz: O mais importante para as pessoas não
é a realidade (e suas contradições) que os
marxistas dizem que é, mas descobrir o porque existimos,
porque na concepção comum, não existimos à
toa, mas por uma razão que não podemos entender.
aaaaaaQuando Cazuza disse: “Ideologia, eu quero uma prá
viver”, ele estava dizendo o mesmo que Sahlins:
aaaaaa “As pessoas, enquanto responsáveis por suas
próprias ações, realmente se tornam autoras
de seus próprios conceitos, isto é, tomam a responsabilidade
pelo que sua própria cultura possa aaaaaaTer feito com elas.
Porque se sempre há um passado no presente, um sistema a
priori de interpretação, há também “uma
vida que se deseja a si mesma” (como diria Nietzsche) ”.
Essa “vida que se deseja a si mesma” não é
outra coisa que a ideologia enquanto “processo”, enquanto
“atributo” da cultura. Ela significa que as pessoas
vivem a concepção delas mesmas de realidade, i.e.,
a vida que se vive é aquela que se acredita real. Ou seja:
Vive-se aquilo que acreditamos, a realidade que acreditamos ser
real. E a cultura não é nada mais que a criadora dessa
realidade virtual - a ideologia - que vivemos. Negar essa realidade,
seria negar a própria virtualidade que é a condição
humana.
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